18/10/2010

Histórias da vida como ela é

"Alguém dirá que A vida como ela é... insiste na tristeza e na abjeção. Talvez, e daí? O homem é triste e repito: - triste do berço ao túmulo, triste da primeira à última lágrima. Nada soa mais falso do que a alegria. Rir num mundo miserável como o nosso é o mesmo que, em pleno velório, acender o cigarro na chama de um círio. Pode-se dizer ainda que é triste A vida como ela é... - porque o homem morre. Que importa tudo o mais, se a morte nos espera em qualquer esquina? Convém não esquecer que o homem é, ao mesmo tempo, o seu próprio cadáver. Hora após hora, dia após dia, ele amadurece para morrer.
(...)
Sim, o homem é sórdido porque morre. No seu ressentimento contra a morte, faz a própria vida com excremento e sangue."

Nelson Rodrigues

25/05/2010

Dentro da noite veloz

Lindo:



Serei um merda
quero ser um merda
Quero de fato viver.
Mas onde está essa imunda
vida mesmo imunda?
No hospício?
num santo
ofício?
no orifício
da bunda?
Devo mudar o mundo,
a República? (...)



trecho de Dentro da noite Veloz, de Ferreira Gullar

21/03/2010

O Cão Sem Plumas

Como uma maçã
é muito mais espessa
se um homem a come
do que se um homem a vê.

Como é ainda mais espessa
se a fome a come.
Como é ainda mais espessa
se não a pode comer
a fome que a vê



(JCMN em O Cão Sem Plumas)

19/10/2009

minha profissão

Por que optei por escrever? Não sei. Ou talvez saiba:
Entre a possibilidade de acertar muito, existente
Na matemática, e a possibilidade de errar muito,
Que existe na escrita (errar de errência, de caminhar
Mais ou menos sem meta) optei instintivamente
Pela segunda. Escrevo porque perdi o mapa.

Gonçalo M. Tavares

anedotinhas do pasquim

De manhã, o pai bate na porta do quarto do filho:

– Acorda, meu filho. Acorda, que está na hora de você ir para o colégio.

Lá de dentro, estremunhado, o filho respondeu:

– Pai, eu hoje não vou ao colégio. E não vou por três razões: primeiro, porque eu estou morto de sono; segundo, porque eu detesto aquele colégio; terceiro, porque eu não aguento mais aqueles meninos.

E o pai respondeu lá fora:

– Você tem que ir. E tem que ir, por três razões: primeiro, porque você tem um dever a cumprir; segundo, porque você já tem 45 anos; terceiro, porque você é o diretor do colégio.

(Anedotinhas do Pasquim. Rio de Janeiro. Codecri, 1981)

09/10/2009

mais um post...

... sobre bebida


Cachaça Mecânica

Erasmo Carlos


Vendeu seu ternoSeu relógio e sua alma

E até o santo
Ele vendeu com muita fé
Comprou fiado
Prá fazer sua mortalha
Tomou um gole de cachaça
E deu no pé...

Mariazinha
Ainda viu João no mato
Matando um gato
Prá vestir seu tamborim
E aquela tarde
Já bem tarde, comentava
Lá vai um homem
Se acabar até o fim...

João bebeu
Toda cachaça da cidade
Bateu com força
Em todo bumbo que ele via
Gastou seu bolso
Mas sambou desesperado
Comeu confete
Serpentina
E a fantasia...

Levou um tombo
Bem no meio da avenida
Desconfiado
Que outro gole não bebia
Dormiu no tombo
E foi pisado pela escola
Morreu de samba
De cachaça e de folia...

Tanto ele investiu
Na brincadeira
Prá tudo, tudo
Se acabar na terça-feira...

Vendeu seu terno
E até o santo
Comprou fiado
Tomou um gole
João no mato
Matando um gato
Naquela tarde
Lá vai o homem...

João bebeu
Toda cachaça da cidade
Bateu com força
Em todo bumbo que ele via
Gastou seu bolso
Mas sambou desesperado
Comeu confete
Serpentina
E a fantasia...

Levou um tombo
Bem no meio da avenida
Desconfiado
Que outro gole não bebia
Dormiu no tombo
E foi pisado pela escola
Morreu de samba
De cachaça e de folia...

Tanto ele investiu
Na brincadeira
Prá tudo, tudo
Se acabar na terça-feira...

Prá tudo, tudo
Se acabar na terça-feira...

02/10/2009

EMBRIAGUEM-SE

EMBRIAGUEM-SE

É preciso estar sempre embriagado. Aí está: eis a única questão. Para não sentirem o fardo horrível do Tempo que verga e inclina para a terra, é preciso que se embriaguem sem descanso.

Com quê? Com vinho, poesia ou virtude, a escolher. Mas embriaguem-se.

E se, porventura, nos degraus de um palácio, sobre a relva verde de um fosso, na solidão morna do quarto, a embriaguez diminuir ou desaparecer quando você acordar, pergunte ao vento, à vaga, à estrela, ao pássaro, ao relógio, a tudo que flui, a tudo que geme, a tudo que gira, a tudo que canta, a tudo que fala, pergunte que horas são; e o vento, a vaga, a estrela, o pássaro, o relógio responderão: "É hora de embriagar-se! Para não serem os escravos martirizados do Tempo, embriaguem-se; embriaguem-se sem descanso". Com vinho, poesia ou virtude, a escolher.



Baudelaire

03/08/2009

always Nietzsche

"As mulheres podem tornar-se facilmente amigas de um homem; mas, para manter essa amizade, torna-se indispensável o concurso de uma pequena antipatia física."

28/07/2009

estar sendo.ter sido

"... penso que ele sabia que se efetivamente se deitasse com ela o sonho terminaria. sábio Kramer. nunca mais o vi. há sonhos que devem permanecer nas gavetas, nos cofres, trancados até nosso fim." Hilda Hilst

como não sei usar decentemente as palavras, uso uma pessoa que as usa por mim.

23/07/2009

pensamento

"O que é o amor senão o compreendermos e alegrarmo-nos com o facto da outra pessoa viver, agir e experienciar de forma diversa da nossa". Nietzsche

22/07/2009

Letras em pauta

o mal do estudante de Letras é não poder (porque não tem tempo) ler o que quer.
o bom é que, muitas vezes, ele tem ler textos bons, o que compensa a privação anterior.


Quero ler: As boas mulheres da China

21/07/2009

[285] do livro do desassossego

Estou quase convencido de que nunca estou desperto. Não sei se não sonho quando vivo, se não vivo quando sonho, ou se o sonho e a vida não são em mim coisas mistas, intersecionadas, de que meu ser consciente se forme por interpenetração.
Às vezes, em plena vida ativa, em que, evidentemente, estou tão claro de mim como todos os outros, vem até à minha suposição uma sensação estranha de dúvida; não sei se existo, sinto possível o ser um sonho de outrem, afigura-se-me, quase carnalmente, que poderei ser personagem de uma novela, movendo-me, nas ondas longas de um estilo, na verdade feita de uma grande narrativa.
Tenho reparado, muitas vezes, que certas personagens de romance tomam para nós um relevo que nunca poderiam alcançar os que são nossos conhecidos e amigos, os que falam conosco e nos ouvem na vida visível e real. E isto faz com que sonhe a pergunta se não será tudo neste total de mundo uma série entreinserta de sonhos e romances, como caixinhas dentro de caixinhas maiores – umas dentro de outras e estas em mais –, sendo tudo uma história com histórias, como as Mil e Uma Noites, decorrendo falsa na noite eterna.
Se penso, tudo me parece absurdo; se sinto, tudo me parece estranho; se quero, o que quer é qualquer coisa em mim. Sempre que em mim há ação, reconheço que não fui eu. Se sonho, parece que me escrevem. Se sinto, parece que me pintam. Se quero, parece que me põem num veículo, como amercadoria que se envia, e que sigo com um movimento que julgo próprio para onde não quis que fosse senão depois de lá estar.
Que confusão é tudo! Como ver é melhor que pensar, e ler melhor que escrever! O que vejo, pode ser que me engane, porém não o julgo meu. O que leio, pode ser que me pese, mas não me perturba o tê-lo escrito. Como tudo dói se o pensamos como conscientes de pensar, como seres espirituais em quem se deu aquele segundo desdobramento da consciência pelo qual sabemos que sabemos! Embora o dia esteja lindíssimo, não posso deixar de pensar assim... Pensar ou sentir, ou que coisa terceira entre os cenários postos de parte? Tédios do crepúsculo e do desalinho, leques fechados, cansaço de ter tido que viver...



Bernando Soares